Limites da aplicação de medidas executivas atípicas na recuperação de crédito divide a doutrina processualista
O sistema judicial brasileiro é um dos mais congestionados do mundo, com um percentual de ações paradas da ordem de 70%, conforme dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O artigo 139, inciso IV, do Código de Processo Civil (CPC) foi um dos artifícios idealizados para elevar a efetividade do Judiciário. Segundo ele, o magistrado poder adotar técnicas de execução indireta para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive em casos de recuperação de crédito — o que terminou por gerar mais discussões e processos para a Justiça.
Um deles foi parar no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), cuja 8ª Turma Cível determinou, por unanimidade, a penhora 62.929 pontos do programa TAM Fidelidade do sócio de uma empresa de criptomoedas investigada por suposta prática de pirâmide financeira. O relator, desembargador Mario-Zam Belmiro Rosa, ressaltou a inexistência de outros bens penhoráveis e o valor econômico das milhas aéreas, comercializadas em plataformas como Maxmilhas, Hotmilhas e 123milhas.
De acordo com Bianca Burlamarque, advogada do escritório Andrade Maia, a aplicação de medidas atípicas na recuperação de crédito é uma estratégia para constranger o devedor que, embora possua meios, está se esquivando de realizar o pagamento. Elas não são taxativas ou pré-estabelecidas em lei, mas determinadas conforme o contexto de cada processo. Entre as mais comuns, estão a apreensão do passaporte e/ou da CNH e o bloqueio de cartão de crédito.
Essa possibilidade motivou a ADI 5.941, ajuizada pelo Partido dos Trabalhadores no Supremo Tribunal Federal (STF). A ação pede a nulidade da norma para declarar inconstitucionais interpretações que permitem a restrição de direitos garantidos pela Constituição. Diz a legenda que admitir a apreensão de passaporte ou da carteira de motorista como meio para sanar um crédito viola a liberdade de ir e vir e a dignidade da pessoa humana. A proibição de participação em concursos públicos ou de licitações públicas também são criticadas pela sigla.
Em 2018, a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, manifestou-se pela procedência do pedido. A PGR sustentou que o magistrado não tem o poder de forçar o pagamento da dívida a partir da restrição de direitos não-patrimoniais, uma responsabilidade restrita ao legislador. E, quando for necessária a aplicação de medidas atípicas relacionadas ao patrimônio, o magistrado deve demonstrar a proporcionalidade e esclarecer que outras tentativas foram insuficientes.
A posição se aproxima da defendida por José Carlos Baptista Puoli, professor de Direito Processual Civil na Universidade de São Paulo. Para o especialista, é inconstitucional a última parte do art. 139, IV, que admite a aplicação de medidas atípicas na recuperação de crédito. A questão pecuniária, segundo o professor, deve ser resolvida no âmbito patrimonial, sem atingir outros direitos como o de sair do país ou dirigir um veículo. “Não há um vínculo efetivo entre o tipo de sanção que tem sido aplicado com base nessas medidas atípicas e aquilo que é a origem, a substância, da obrigação não adimplida.”
A apreciação da ADI 5.941 no STF estava prevista para a última quinta-feira (25/8), mas ela não aconteceu em razão do julgamento da Lei de Improbidade. Ainda não há uma nova data.
Um caso semelhante foi discutido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 2020. A relatora, ministra Nancy Andrighi, entendeu ser possível a adoção de meios executivos atípicos na recuperação de créditos, inclusive em situações de prestação pecuniária, desde que (i) verificada a existência de patrimônio apto a sanar o débito; (ii) esgotados os meios típicos — como a penhora em dinheiro, de veículos ou imóveis — e (iii) a observância do contraditório e da proporcionalidade.
Fernando Gajardoni, professor da USP de Ribeirão Preto e juiz de Direito em São Paulo, argumentou que, abstratamente, não haveria um problema de inconstitucionalidade com a aplicação dessas medidas na recuperação de crédito. Ele pode surgir, entretanto, no caso concreto, não propriamente pela proporcionalidade, mas pelas características do devedor. “O cara é caminhoneiro. Se você vai tomar a CNH dele, tira o seu ganha-pão, viola sua dignidade. E a dignidade está em um valor mais elevado do que o adimplemento das obrigações, então prevalece a dignidade.” O mesmo vale em relação ao bloqueio de passaporte de um diplomata ou de um comissário de bordo.
A 3ª Turma do STJ decidiu negar a devolução de um passaporte por entender que as medidas coercitivas atípicas servem para causar ao devedor “determinados incômodos pessoais”, de modo a convencê-lo ser mais vantajoso pagar a dívida do que sofrer a punição. Na hipótese em questão, o débito vinha de mais de 17 anos e ficou demonstrado o esgotamento das medidas típicas e a ocultação patrimonial. Após a apreensão do documento, a pessoa ofereceu parte dos rendimentos de aposentadoria e pensão à penhora. Diante do incômodo pretendido, os ministros decidiram que as medidas devem “perdurar pelo tempo necessário para que se verifique, na prática, a efetividade da medida e a sua capacidade de dobrar a renitência do devedor.”
Mas nem todas as histórias são de sucesso. Em 2020, o professor e juiz Fernando Gajardoni publicou, ao lado de seu orientando Rodrigo Buck Calderari, um artigo sobre a efetividade das medidas atípicas e constatou que a aplicação das medidas atípicas não levou ao cumprimento das obrigações. Do estudo, que considerou ações no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), é possível formular duas hipóteses: ou as medidas atípicas não funcionam, ou elas estão sendo mal deferidas. Não adianta bloquear a CNH de quem não dirige e o passaporte daquele que não sai do país. “Parece que está faltando criatividade para os operadores do Direito.”
Os processos citados na reportagem, conforme a ordem em que aparecem, têm os números: 0712398-97.2022.8.07.0000 (TJDFT); 5.941 (STF); 1.894.170 (STJ); 711.194 (STJ).
Fonte: Jota