Com o reconhecimento do direito à compensação/transferência de créditos oriundos de recolhimento indevido de ICMS, aberta está a possibilidade de concessão de segurança para abarcar também as operações correspondentes aos cinco anos anteriores à impetração
A proteção dos direitos dos contribuintes remonta às bases do próprio constitucionalismo, quando, na Carta ao Rei João Sem-Terra, exigiu-se que povo é quem deveria indicar a medida do seu esforço. São, portanto, quase mil anos de evolução das garantias individuais contra o poder de tributar emanado das forças estatais.
Em nosso país, o Sistema Tributário Nacional tem capítulo próprio na Constituição de 1988. Nesse capítulo, a “Seção II – Das limitações do Poder de Tributar”, contém o núcleo essencial da cidadania fiscal.1 Ao lado da forma federativa de Estado; do voto secreto, universal e periódico; da separação de poderes; e dos direitos e garantias individuais, tais limitações hão de ser compreendidas como desdobramentos das cláusulas pétreas, nos termos antecipados pelo ministro Celso de Mello, em emblemático voto que proferiu na ADIn 939.2
A Constituição de 1988 trouxe direitos aos contribuintes que se espraiam por todo o texto. No seu art. 150, §7º, consta que a “lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido”.
A lei acima reclamada é o CTN – Código Tributário Nacional, que, nos artigos 165 a 1693, estabelece linhas mestras sobre a restituição de tributo pago em substituição para frente.
O recolhimento do ICMS por “substituição tributária para frente” ocorre quando há expressa disposição legal para a transferência ao estabelecimento industrial fabricante da responsabilidade pela retenção e recolhimento do tributo na saída subsequente, o que determina que se pague antecipadamente o ICMS devido pelas vendas quando da aquisição de mercadorias. Desse modo, o cálculo do recolhimento antecipado tem como base valores superiores àqueles praticados nas operações de venda realizadas posteriormente – caracterizando cobrança excessiva de ICMS, sendo hipótese de imediata e preferencial restituição de valores, nos termos do art. 10 da Lei Complementar n° 87/96.4
O direito à restituição desses valores, no regime de substituição tributária, constitui uma das principais garantias dos contribuintes em face do poder de tributar do Estado, sendo uma pedra de toque diante de ilegalidade ou inconstitucionalidade das cobranças já efetuadas.
Havendo toda essa base no direito positivo, decisões do STF e do STJ têm formado um capítulo indispensável na preservação desses direitos.
O STF, no julgamento do RE 593.849/MG, paradigma do tema 201, fixou a seguinte tese: “É devida a restituição da diferença do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS paga a mais no regime de substituição tributária para frente se a base de cálculo efetiva da operação for inferior à presumida”, garantindo, portanto, o direito de compensação dos créditos tributários pagos a maior.
Percorrendo o caminho processual, o STJ editou a súmula 213, cuja redação diz: “o mandado de segurança constitui ação adequada para a declaração do direto à compensação tributária”.
Posteriormente, o STJ entendeu que “é necessária a efetiva comprovação do recolhimento feito a maior ou indevidamente para fins de declaração do direito à compensação tributária em sede de mandado de segurança”.
O referido entendimento foi firmado no julgamento do REsp 1.111.164/BA, paradigma do tema 118 em sede repetitiva, no qual se registrou que a Corte havia decidido também pela possibilidade de declaração da compensação da ordem, irradiando efeitos patrimoniais para o futuro, e não para o passado, já que apenas após a declaração do direito é que se concretizará a compensação.
A própria procuradoria da fazenda nacional, no parecer PGFN 1.177/13, orientou a Administração Tributária Federal a seguir o entendimento do STJ, reconhecendo o direito dos contribuintes, nos mandados de segurança transitados em julgado, à compensação dos créditos pretéritos ao ajuizamento da ação, limitados tão somente pelo prazo do art. 168 do CTN.6
Em resumo, com o reconhecimento do direito à compensação/transferência de créditos oriundos de recolhimento indevido de ICMS, aberta está a possibilidade de concessão de segurança para abarcar também as operações correspondentes aos cinco anos anteriores à impetração (respeitando-se o prazo do art. 168 do CTN).
Não parou por aí. Em 10/11/21, por unanimidade, o STJ deu provimento ao EREsp 1.770.495/RS, nos termos do voto do relator, ministro Gurgel de Faria, para admitir a utilização do mandado de segurança pelo contribuinte para garantir o direito de fazer a compensação tributária com indébitos recolhidos anteriormente à data da impetração, mas ainda não atingidos pela prescrição.
A questão chegou à Primeira Seção pelo fato de a Primeira e Segunda Turmas terem entendimentos divergentes quanto ao tema.
Para a Primeira Turma, o mandado de segurança que declara o direito de restituição do crédito tributário poderia alcançar indébitos anteriores à impetração, desde que respeitado o prazo prescricional de cinco anos. Por sua vez, a Segunda Turma entendia que o mandado de segurança que busca a declaração do direito à restituição do crédito tributário tem efeitos pro futuro, em respeito à Súmula nº 271 do STF.7 A decisão reavivou o entendimento do próprio STJ esboçado na já citada súmula 213, cuja teor novamente se transcreve: “O mandado de segurança constitui ação adequada para a declaração do direito à compensação tributária”.
Para os ministros da primeira seção do STJ, a posição da primeira turma era a adequada, além de não violar a súmula 271 do STF. Eis trecho necessário à compreensão desse ponto: “reconhecimento do direito à compensação de eventuais indébitos recolhidos anteriormente à impetração ainda não atingidos pela prescrição não importa em produção de efeito patrimonial pretérito, vedado pela súmula 271 do STF, visto que não há quantificação dos créditos a compensar e, por conseguinte, provimento condenatório em desfavor da Fazenda Pública à devolução de determinado valor, o qual deverá ser calculado posteriormente pelo contribuinte e pelo fisco no âmbito administrativo segundo o direito declarado judicialmente ao impetrante.”
Vale notar que, de fato, o respeito ao direito à compensação de créditos tributários via mandado de segurança constitui-se como garantia dos contribuintes na concretização da sua cidadania fiscal. Em respeito a isso, o STF declarou a inconstitucionalidade de dispositivos da própria lei 12.016/09 (Lei do Mandado de Segurança) que obstaculizavam a compensação de créditos tributários. O ministro Marco Aurélio, então relator da ADIn 4.296, apontou que “o preceito dá à fazenda pública tratamento preferencial incompatível com o Estado democrático de direito, relegando à inocuidade possível direito líquido e certo a ser examinado pelo julgador daquele que se diga prejudicado por um ato público”.
O respeito aos direitos dos contribuintes deve ser uma das prioridades dos Estados constitucionais contemporâneos, já que, conforme os ensinamentos de Ricardo Lobo Torres, as limitações ao poder de tributar se confundem com o próprio conteúdo do Direito Constitucional. A Constituição garante não só os direitos dos contribuintes, como também o direito fundamental à ação8, prescrito no art. 5º, XXXV, bem como previu o mandado de segurança como remédio constitucional.
Assim sendo, a realização do art. 150, § 7º da Constituição e dos artigos 165 a 169 do CTN é um dever inafastável do poder judiciário, especialmente Cortes como o STF e o STJ, de forma a realizar os objetivos que coadunem com a ordem constitucional vigente.
Fonte: Migalhas